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«MORRER E DEPOIS» de Maria José Quintela


Maria José Quintela, com esta novíssima obra poética, vem solidificar o que o seu percurso poético e de contínuo trabalho tem vindo a demonstrar – uma identidade própria que parece indicar, paradoxalmente, uma voz inacabada, que procura uma nova sílaba, uma nova palavra, um novo testemunho –, talvez seja este o verdadeiro infortúnio da poeta, o de procurar a «fala do infalável» como vaticinou Goethe, indagar «uma erotização da linguagem», segundo Octavio Paz, ou, ainda, farejar o «vinho do Diabo» como afirmou Agostinho de Hipona. E os poemas de Quintela são tudo isto.


Esta obra poética tem como título «Morrer e Depois», expressão que nos leva, talvez, e de forma subentendida, a uma interrogação – «Morrer, e depois?». A partir daqui inicia-se uma profunda reflexão sobre a vida e sobre a morte que tacteia, muitas vezes, questões filosóficas e metafísicas e que serão, certamente, descortinadas mais à frente.


De referir que todos os poemas são escritos em minúsculas, como Al Berto o fez no «Horto de Incêndio», livro publicado em Março de 1997, pela Assírio & Alvim. Não menos importante, uma especial menção à capa do livro e que é da autoria do poeta e fotógrafo Jorge Velhote, fotografia que, de certa forma, simboliza adequadamente a temática poética presente neste livro.


A obra de Quintela inicia-se com um belíssimo poema de Edmond Jabès, seguido de uma nota escrita pela mesma e que é, de facto, bastante pertinente para que se compreendam determinados caminhos percorridos pela poetisa e que não devem ser entendidos como subterfúgios desnecessários.

O primeiro poema da autora tem como título: «abertura», leia-se: «o corpo/ entalhado no pó secularmente resolvido/ não estorva./ de qualquer lado/ se enxerga a desenvoltura do barro,/ morrer e depois. (pág. 13). Seguindo-se de 43 poemas numerados, terminando com um último poema, também ele intitulado «abertura», onde se pode ler: «tudo o que vai e que vem são moléculas de via láctea.» (pág. 59).


Este trabalho aborda, seguramente, a morte, mas também a vida, sendo que nem uma, nem outra têm que ser obrigatoriamente o início ou o fim de algo, seria redutor se assim o fosse, ambas serão, provavelmente, importantes vectores de uma profunda reflexão sobre a existência humana, como defendeu o filósofo Martin Heidegger.

No entanto, ao longo dos poemas, é perceptível que a autora vai descortinando não só sobre a morte orgânica do Homem – e aqui subtende-se Homem como sinónimo de Humanidade –, mas também sobre outros tipos de morte, nomeadamente, a morte social: «vivem de costas para a morte e de lado para a insónia que/ arremete contra o peito» (pág. 19); a morte religiosa: «desviam a própria luz,/ acusando os outros da própria infâmia» (pág. 20); a morte sentimental: «deambulam melancólicos na bruma, atentos a reencontros» (pág. 41); a morte política: «de costas para o céu, espelham o novo lugar à mesa. se fossem insubstituíveis não saíam do seu posto.» (pág. 54). Ou, até, a morte cultural: «morrem diante da revelação,/ e morre também quem se revela.» (pág. 24).


Cada poema aparenta ser um bloco de granito, intacto, pesado, inviolável, duro, aliás, como a vida que está a escassos minutos de criar uma placenta até à morte. Bloco de granito imenso, como está presente na capa do livro, e que a autora teve que esculpir com destreza e sabedoria, não obstante, mudamos de página e reencontramos um novo bloco granítico, dantesco quase, e novamente a autora, com um maço e um cinzel esculpe arduamente e assim vamos cumprindo a viagem que a poetisa nos oferece até à página 59 onde nos deparamos com o último poema intitulado «abertura», o mesmo título que o primeiro poema, como se fossem redundantes, e percebe-se que o mesmo talvez não seja o último, mas o primeiro, e caso seja o primordial poema, sabemos de antemão que esperar-nos-ão novos blocos de granito, novamente intactos, à espera de serem esculpidos, veementemente, mas desta vez pelas mãos do leitor.


A poesia de Maria José Quintela é marcada por uma tradição hermética que podemos contemplar em Herberto Hélder, Maria Teresa Horta, Ana Hatherly, Giuseppe Ungaretti, Luiza Neto Jorge, Eugenio Montale, Adília Lopes ou até alguns trabalhos de Maria Gabriela Llansol. Porém, dificilmente encontraremos estas influências na poesia de Maria José Quintela, visto que a poetisa foi, ao longo do tempo, maturando a sua voz poética, afastando-se, conscientemente, de qualquer voz a que a pudessem associar. De ressalvar que os poemas presentes neste volume, além do teor poético – o mesmo que tacteia a morte, a vida, a memória, o olvido, e a erudição –, têm, também, e como já fora referido, um certo teor filosófico e metafísico, para que seja possível a construção de um novo universo, isento, sobretudo, de corrupção nas suas mais diversas proporções: «o brilho da consciência acusa-os de cegueira./ com culpa ou sem culpa, recorrem a mantras para travar/ o feroz confronto./ o dia é uma arma com dois calibres e dispara sem/ descriminação.» (pág. 38).


Ao longo dos poemas também podemos encontrar algo que, pessoalmente, aprecio, isto é, versos que, dada a sua dimensão metafórica, poderão assumirem-se como títulos de futuros livros. Por exemplo: «a desenvoltura do barro» (pág. 13); «a solidão corpo a corpo» (pág. 16); «eco uterino» (pág. 25); «fulgor dos presságios» (pág. 29); «escopro» (pág. 36); «o medo ruminando o silêncio» (pág. 38); «o novo lugar à mesa» (pág. 54).


Há um diálogo entre a autora e o leitor, embora este último irá certamente segredar questões à poetisa sem esperar qualquer resposta, visto que apesar de não existirem muitos pontos interrogativos nos poemas (como também é visível no título), as questões estão lá, no território poético, a remoer figuras de estilo, como se fossem personagens de um labirinto qualquer, que procuram um novo idioma, que traduza essa palavra muitas vezes gasta ou mal usada por aqueles que só têm cansaço ou pouca reconversão semântica, falo da «Poesia», em letras maiúsculas, indubitavelmente, a que ensaia a definição daquele que anseia ser poeta, a que procura a linha do fascínio, daquilo que é sublime, e que é objecto intemporal. Como Ives Bonnefoy registou ao biografar Rimbaud – «A verdadeira poesia, a que é recomeço, a que reanima, nasce muitíssimo perto da morte. Aquilo a que chamamos "vocação poética" é tão-só um reflexo de luta, quantas vezes tornado inoperante pelo mau sono da existência banal, esse sono que avança para a morte.» (Edições Cotovia, Lisboa, 2004, pág. 24).


«Morrer e depois», só o futuro, ou o tempo, na sua absoluta dignidade o poderá demonstrar. Enquanto esperamos por esse sussurro, não nos deixemos às escuras, mesmo no decesso há sempre poemas com luz, e que «batalham a vida inteira contra a morte e a morte não basta/ para morrer de vez.» (pág. 34).



Luís Aguiar

O autor salvaguarda o direito de redigir esta resenha crítica ao abrigo do anterior acordo ortográfico.

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